Ultrapassados os estafantes festejos de fim de ano, vai este multi-secular povo de tradição humanista, hoje denominado português, reconhecido também fora de portas pela sua imensa hospitalidade e pela coragem em enfrentar dificuldades e desconhecimentos, discutir novamente a legalidade da prática do aborto provocado.
Seria bom, antes de mais, deixarmos certas patéticas ideias de lado, como os eufemismos que resultam em elegantes siglas como IVG ou conotar a opinião de cada um com questões religiosas ou políticas. Aqui, esquerda e direita nem deveriam ter posições definidas, até porque boa parte das suas doutrinas se contradizem com vários argumentos invocados.
Foi exactamente, aliás, a própria politização da problemática que levou ao primeiro dos equívocos quanto à consulta de Fevereiro – os cidadãos a quem, durante mais de oito séculos, só por duas vezes lhes foi permitido opinar sobre questões que não sejam a de escolher representantes, vão ser obrigados a repetir uma resposta à primeira das perguntas! Não haverá outras matérias igualmente importantes para que os portugueses se pronunciem, a começar provavelmente sobre que mecanismos podem ser utilizados para convocar um referendo? Será completamente legítimo que só quando os governantes ou o Parlamento decidem colocar perguntas concretas aos portugueses é que estes devem decidir? Não seria mais pertinente se se aproveitassem os enormes custos de uma consulta referendária para se interrogar os cidadãos sobre assuntos que nunca antes lhes foram colocados como a pena de morte, a eutanásia, a legalização da prostituição ou do comércio de drogas, o “casamento” de homossexuais ou as regras para naturalização de estrangeiros, em vez de lhes atirar com a mesma pergunta ao fim de 8 anos? Ou matérias políticas como o regime semi-presidencial, a república versus monarquia, os meios de alteração da Constituição ou grandes polémicas da ordem do dia como a vontade em pagar o aeroporto da Ota, o TGV, ou as SCUT’s através de portagens ou dos seus impostos?
A primeira razão para votar “Não” seria a de demonstrar que os decisores deveriam ter mais respeito pelo processo referendário e pela voz expressa pelos compatriotas, em vez de o usarem essencialmente como instrumento político.
Digo-o com o à-vontade de quem votou “Sim” no referendo de há oito anos. Nesse momento, comoveram-me sobretudo os argumentos de que sempre se verificariam abortos forçados, qualquer que fosse a lei, e os dramas de alguns casos mais próximos de gravidezes indesejadas. Hoje em dia, não tenho qualquer veleidade em admitir que não foi necessário ter sido pai para ter mudado de opinião.
Entendo, acima de tudo, que não devem existir posições acaloradas, sejam elas realmente radicais ou meramente firmes, pois a delicadeza e a complexidade do dilema são tamanhas, que é forçoso admitir que a opção será sempre por um mal menor. O que não quer dizer, contudo, que se arrume a questão com um mero “cada um faça o que entender”.
Poderá ser um pouco falacioso até pensar que, como sempre existirão abortos voluntários, a lei deve protegê-los. Mal de um país se, confrontado com a impotência de fazer cumprir a sua legislação, resolva modificá-la no sentido de permitir a sua desobediência. Assim, seria óbvia, por exemplo, a legalização da prostituição ou a permissão da apresentação de falsas despesas no IRS e no IRC, pois jamais um rigoroso controlo das leis actuais possibilitará que a generalidade dos cidadãos as respeitem. Tenhamos presente que a legislação deverá sempre obedecer a premissas normativas, mas também orientativas e, desejavelmente, informativas.
A outra grande questão, que habitualmente o “Sim” utiliza, prende-se com as dificuldades sociais e económicas que algumas mães acidentais teriam para educar e fazer crescer o indesejado filho. Aqui, corremos o risco de tomar a nuvem por Juno, pois não há autoridade alguma que tenha na sua posse dados estatísticos fiáveis sobre a precariedade das envolventes sócio-económicas de cada uma destas eventuais mães. Intuitivamente, arrisco-me a achar que a esmagadora maior parte dos casos que resultam em abortos provocados em Portugal têm como motivo simples constrangimentos sociais, seja por falta de coragem de confrontar a família, seja de assumir a gravidez e a educação da criança perante uma moldura social mais vasta. Aos restantes casos, será legítimo questionar: quantas situações graves e indesejadas somos todos forçados a aceitar, ao longo da vida, e com elas conviver esforçadamente? E quantas delas, sendo resolúveis, não o fazemos sem recorrer necessariamente à via mais fácil? E, mesmo naquelas em que baqueamos, ao tomar medidas fortes e irreversíveis, quantas vezes não nos arrependemos? Lembremo-nos contudo que não estamos a falar de algo que tenha a mesma importância do que a opção por um filme ao serão, nem o local onde passar o Natal. Bom, mas admitamos que, mesmo assim, deverão sobejar algumas situações em que aquele pequeno ser humano, ou, se preferirem, o potencial cidadão, não teria condições familiares minimamente dignas para progredir na caminhada da vida. Então e o Estado, que deverá fazer-lhe? Facilitar o corte de todas as possibilidades de sobrevivência ou responsabilizar-se pelo seu crescimento e educação até à idade adulta, tal como age perante um bebé abandonado num hospital público?
As boas razões para preferir “Não” ainda serão algumas mais, para o “Sim” também as há, mas não se pode deixar de apontar a posição covarde que o Estado provavelmente virá a assumir, ao tolerar e financiar abortos artificiais em vez de se responsabilizar pelos infortúnios ou leviandades dos seus cidadãos, como faz em tantas outros domínios, e investir mais em informação preventiva e formação apropriada, dado que, não sendo já Portugal propriamente um País de gente tão iletrada que ignora como se procria, ainda não tem uma disciplina de Educação Sexual na escolaridade obrigatória.
Mas tem problemas de natalidade.
Acabo, pois, por tranquilamente desejar que as intenções de legalizar a morte medicamente assistida do embrião sejam, neste referendo, de novo abortadas.
André Pinho, no Farol do Deserto
7 comentários:
A menos que pretenda pegar pela palavra "interrupção" e reduzir a sua crítica a uma embirração semântica, aborto é realmente diferente de IVG porque esta é voluntária e o aborto pode não ser.
Levanta uma questão interessante: se o aborto for tornado legal, será que as mulheres ficam mais sujeitas a pressões para abortar, nomeadamente do patrão, do namorado ou da família?
Isto seria aborto e não IVG, não é?
Fernando,
Não sei se ficam mais sujeitas ou não, mas o que me parece é que será mais fácil acontecer numa situação de clandestinidade em que ninguém é responsável pelo acontece.
A expressão IVG faz a distinção entre a escolha da mulher (que afinal é o que mais importa para o "sim") e os casos de aborto forçado que o Fernando referiu.
Ainda há o aborto espontâneo que acontece às mulheres que querem ter os seus filhos mas por algum problema de saúde acabam por abortar.
Devo confessar que me faz confusão a sigla IVG. Se estão tão convictos do que defendem, porque razão usam um eufemismo para o definir?
Só falo por mim. Uso a expressão IVG porque, como disse, defendo a interrupção voluntária da gravidez e rejeito qualquer tipo de imposição sobre a mulher. Se os conceitos são diferentes (IVG é um caso particular de aborto) faz sentido distinguí-los.
E se esta lei for aprovada, acha que só serão feitas IVG's? Não serão feitos abortos?
Acho que não, mas não é isso que vou votar para ser despenalizado. Acredito também que a despenalização contribui para que esses casos diminuam.
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